segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Trecho 167-169


Quando abri meus olhos na noite seguinte, preenchi meus pulmões de ar e saí de minha urna funerária, meu corpo estava tomado de um vazio. Procurei por Lúcio, mas não o encontrei. Deprê, com certeza, estava na casa da irmã do Vampiro. Na casa, era só eu e mais ninguém. Cambaleante, segui até o chuveiro. Meu corpo me dava asco, ânsia, uma vontade imensa de vomitar todas minhas entranhas e me limpar do sangue alheio. Se na noite anterior tudo aquilo me excitava, agora eu remoia meus pensamentos e me indagava se toda essa ilusão de vida em morte valia realmente a pena. Despi-me. Encarei minha face corada, minha cicatriz saltada, meus olhos castanhos enevoados, meus lábios rosados, minha tez branca e sem máculas, meu pescoço macio, meus ombros delineados, meus braços finos e definidos. Desci os olhares por meu tronco, admirei minha barriga, meus pelos pubianos, minhas coxas tensas, meus pés pequenos, meus dedos frágeis. No espelho, meu reflexo me atordoava. Abri o chuveiro, fechei os olhos e deixei a água quente escorrer em rodopios por meu corpo, enquanto minhas mãos, com espuma, passeavam por toda minha extensão corporal. Massageava-me, procurava meus pontos de prazer. O silêncio cedia lugar aos respingos das águas. Cai de joelhos e comecei a chorar com a voz emudecida. Minhas lágrimas se mesclavam com as águas quentes que caiam do chuveiro. Pensei em Muriel, na vida de Muriel. Pensei na vida da mulher de cabelos encarapinhados e dentes tortos. Pensei na vida da criança vinda ao mundo por minhas mãos. Solucei, mordi meus lábios, apertei-me forte, de forma a tornar-me uma fortaleza introspectiva. Em minha visão brotava os corpos nus, os cheiros, as sensações de trocas de calor entre meu corpo vivo em morte e os corpos vivos em vida. O sofrimento de Muriel, os medos da mulher de cabelos encarapinhados e a ruptura da vida da criança ecoavam por minha cabeça. Por que eu me alimentava de vida? Por que buscava na vida dos outros a tentativa de preencher meus vazios? Solucei novamente e apertei-me com mais força. Meus cabelos molhados encobriam minhas costas e balançavam com o deslizar das águas. O sentimento de vazio novamente tomava conta de mim. As sensações conflituosas se abriam feito uma flor em meu peito e a essência dela emanava por todos meus poros. As mariposas cinzentas surgiam; meu cãozinho negro, triste e cabisbaixo ladrava ao lado, com o rabinho entre as pernas, traduzindo-se na mais pura melancolia; o baile de máscaras da sociedade ressurgia dentro de meu ser exposto às destemperanças de meus sentimentos conflituosos. A água continuava a correr por meu corpo, rodopiava por minhas sinuosidades e fazia cócegas por meus cabelos loiros e compridos. A água. Sim. A fluidez, o mundo sem formas, a facilidade de adaptação aos meios. A água. Minha vida. Eu era um sentimento líquido, um amor líquido, incapaz de criar laços, raízes. Incapaz de amar alguém com todas as forças. Eu apenas me adaptava, criava laços fluídos de fácil assimilação com o único propósito de tentar me enquadrar ao meio e buscar preencher meu vazio. As pessoas transformavam-se em formas para minha liquidez e eu apenas me adaptava. Meu sorriso, minha incapacidade de mostrar minha face sem máscaras: eu era a água, a fluidez, o sentimento sem formas. E Muriel, dentro de meu corpo, mostrava-me que na bruteza de seu ser, possuía raízes, sendo capaz de criar laços reais entre ele e o mundo que vivia. A mulher de cabelos encarapinhados, gritando em mim, mostrava-me as possibilidades de sentir um amor sólido pelo marido e pelo filho. E a criança, na sua pureza, na sua ruptura entre o conforto da barriga materna e as dores da vida, berrava para fora de meus lábios toda sua sede por viver.
Arregalei meus olhos, gritei, levei meu pulso até os lábios e cravei meus dentes, de forma a abrir um talho. Deitei-me no chão de piso frio. Fechei os olhos. Levantei o braço e o posicionei entre minha barriga e a água que salpicava do chuveiro, permitindo que ela se misturasse com a vida rubra e, assim, escorresse pelo ralo. Minha fluidez de sentimentos se mesclava com a fluidez translúcida. Sentia meu vazio derrapar ligeiro pelo talho aberto, se misturar com a água e, enfim, repousar no lugar de onde jamais deveria ter saído: a escuridão, o silêncio, a ausência de luz, o esgoto. A fraqueza foi tomando conta de mim, até que minha vista embaçou numa multidão de nuvens negras e sem cor. Suspirei uma última vez, gemi um pouco e, num baque, apaguei.

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